Da janela, 10 de fevereiro de 2011,




Eu te amo de óculos, míope, olhando a janela, enquanto Dostoievski belisca as tardes de mim. Não traga wiskhy, esqueça martini, hoje nem almocei. Tampouco café da manhã. Alimentei corpo todo de letra maiúscula, de letra minúscula, de um desejo de virar personagem, e de criar. Personagem de um rodapé. Já imaginou se nas grandes histórias, lá no embaixo da página, houvesse um personagem? Eu o amaria mais do que a você e sua boca de cena. Rasguei as duas passagens para Amsterdã. Você parece louco. Odiei este sedex. Essa sua bilheteria de amar suave sobre as flores e a nudez não proibida de um mundo livre. Vai ser hippie lá no quinto dos infernos, meu amor. Gosto do romantismo que exale vida na ponta do pé. Coisa de bailarino, depois de sete cervejas no bar do Antônio. Preferia você quando comíamos mostarda só porque a odiávamos, e porque a odiávamos, aprendemos a fazer o molho de mostarda que nada e ninguém nunca viu igual. E na calçada corríamos de três cachorros ofegantes que queriam comer nossas vidas mais ofegantes ainda. Ganhamos deles, às gargalhadas, e em cima do muro. Machuquei o pé e você riu. Você riu do sangue, trazendo lencinho branco pra me ajudar mas rindo, eu achei isso lindo, eu achei isso livre, eu achei isso homem. Vou lavar o chão desta casa, está um horror. No banheiro tem verso até no box molhado, dei de fazer música às quatro da manhã e no banheiro por causa da acústica. Você e sua acústica desarrumada sobre o lençol. Você desafinando bossa no meu tom. Você de rosto moço sorrindo pra porta. Não te perdoo por te amar. Volto a Dostoievski, que um dia perdoei. Têm duas garrafas de água no canto do cômodo e eco em paredes. Até que enfim acabou o horário de verão. Uma persiana, por favor, era eu pedindo ternura.
Pro vendedor.



 Maria. 

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Do banheiro, 13 de fevereiro de 2011,




Moça,

Faça-me o favor. Não eram três cachorros. Eram dois.

amor,
Henrique. 

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Dane-se, 21 de fevereiro de 2011,




Você é tão previsível que não te suporto. Já imagino sua cara escrevendo isso, sua ironia dando baforadas no cigarro natureba e o sorriso de um lado só, enfeitando a barba galã em que você se meteu. Bom não estar grávida. Mas quero um filho seu.

Ódio,
Maria.


ps. escuta, rapaz:




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Da madrugada, 23 de fevereiro de 2011

hoje o céu está escuro como os olhos da gata Flora que você me vendeu. Ela mia de olhos escuros, Maria.
Duas sementes pretas que brilham. Vou te dizer o óbvio: cansei desses quadros todos. Tentei tinta por tinta, mulher! Não deu em nada. Na tela tem apenas um pedaço de sombra rasgada. Ser artista é
Maria ser artista é um caos ambulante no sol de meio dia, pode falar.
Mas a merda é que agora é noite, Maria. Aí as cores se misturam pra me deixar cego sem merecer.
Não ver é luxo para poucos.
Vejo e me fodo. Vejo também essa música que você me manda ouvir, essa música que você é, essa coisinha que você é, essa coisinha estragada no corredor sentada à espera da palavra a palavra a palavra a palavra a palavra que

Que, Maria


A palavra não existe. E nem você.


escuta, moça:


eu não te amo. Eu te quero boca e olhos abertos de medo e vida.
Eu te quero mais do que te amo.
Porque te amar, Maria
é proibido.



Nada,
Henrique.


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Da alegria, 23 de fevereiro de 2011


Seu nada, hoje corpo cansado demais, suado demais, de tanta palavra que não existe. Escrevo as tintas enquanto você pinta. Não se preocupe com sombras rasgadas. Toda sombra é rasgada.
Me amar é mais do que proibido, não me ame e eu te peço.
Mas também não queira.

você pode se arrepender. 

Comprei doces para engordar, estou feito criança intensa, estou feito noiva no altar, estou feito malandro na lapa.
Fe
Li
Ci
Da
De. 

Assim. Não pergunte a razão. 

Hoje deixo até cigana ler minha mão. Só pra ouvir a palavra sorte. 
Só pra ouvir a palavra morte. 
Receita, pano, segredo, adivinhação. 


Um Brinde às conchas da praia abandonada que vi na televisão. 

Sua rima pobre, sua sombra rasgada, que não é sua

Maria. 


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Da descoberta, 26 de fevereiro de 2011

engraçado, Maria, descobrir que a vida é esse liquido que escorre chuva nas telas. Deixei as janelas abertas e fui beber com Tom. Tom disse o óbvio no mar: mas você é um louco, bicho, um louco. Cheguei e vi que era. Os quadros todos para secar a chuva invantindo porta, invadindo ar, invadindo pele, invadindo, Maria meu braço dói. De te escrever. Não quero mais te escrever mas sei que você morre se eu parar com essas correspondências que não levam a nada, que não são nada. Sei que para você isso é tudo.
Você podia ser mais real. Procurar menos. Viver mais.


Henrique.

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Da casa de vidro, 23 de fevereiro de 2011

Meu caro, 

são mesmo tudo para mim, essas correspondências. Mas não se engane: é mais pelas palavras do que por você. E se você pára, eu morro sim, por instantes. Depois qualquer instante pode ser tudo para mim. Não se trata de nós, ou do quanto gosto dos seus óculos embaçados de suor noturno amando catedrais, não se engane, meu H. Sou das palavras. Não sua, já disse. Sei que ficaremos velhos, mais do que essa juventude tem nos deixado. Sei que isso passa. E haverá saudade. Um pouco um do outro. Mas mais ainda desse tempo. Faço as unhas, gosto do nome Sara e queria ter me chamado Beatriz: 


Tantos vão embora, tudo um dia vai, tudo que vai um dia foi, Henrique Henrique estamos vivos! Vivemos de quê? Além das sombras de tinta e letra, vivemos o quê? Sal na pele porque mar. Doce na sua porque rio. Nos misturamos, H, mas é pecado. Não trocássemos cartas, hoje poderíamos algum direito de alegria. Esqueça leveza, rapaz, esqueça. Já é tarde. Pesamos um no outro o preço incalculável e desastroso de amar por palavra no papel. Vivemos quase só aqui. Lá fora, lá fora a mulher carrega sacola de compras e terças feiras. Lá fora, Henrique, a chuva não invade quadros. 
Pode ir. Vá. 


Por hoje, Beatriz.